segunda-feira, 18 de março de 2013

Artigos - A Visão Valenciana do século 21 - Fernando Monteiro



Museu do Amanhã - Rio de Janeiro
 
Foi num dos volumes da Coleção Folha/Grandes arquitetos que vi pela primeira vez o nome do espanhol Santiago Calatrava.

A proposta editorial da publicação da Folha pretendeu reunir “os grandes nomes da arquitetura que mudaram a paisagem urbana do mundo”, e os demais enfocados nas edições seqüenciadas me eram familiares, com a única exceção de Calatrava. Confesso tal desconhecimento sem maiores pudores, uma vez que não sou arquiteto, mas tão somente um admirador das obras desses profissionais que não só "reordenam o espaço", mas eventualmente podem fazer se refletirem nele os caminhos mais amplos da civilização (ao tornarem as suas concepções uma espécie de espelho da cultura em permanente transformação).

Exatamente o tipo de artista – conforme cabe designar – que foi outro espanhol de alta têmpera criativa (Antoni Placid Gaudí i Cornet), um americano de gênio indiscutível (Frank Lloyd Wright), um francês seminal (Charles-Edouard Jeanneret-Gris – Le Corbusier) e um brasileiro como Oscar Niemeyer, aos quais eu via ser ombreado o trabalho do para mim "novo" nome entre os grandes da arquitetura: Santiago Pevsner Calatrava Vall.

Sou um tanto obsessivo com tais lacunas, e programei conhecer a obra de Calatrava – seu “nome de guerra” das formas, digamos assim – se possível in loco pelo menos na Valência onde o espanhol veio ao mundo, em 28 de julho de 1951. E essa tão velha e ao mesmo tempo nova Valência (que, segundo reconhece o próprio arquiteto, ofereceu-lhe uma dos melhores oportunidades para um jovem exercer o seu talento), merece que se diga alguma coisa a seu respeito, como cidade cujas inquietações vão da vigorosa literatura de um Vicente Blasco Ibañez à "visagem verneana do futuro, em termos de arquitetura" hoje instalada numa das extremidades do leito seco rio Túria, com a assinatura que apaixona os valencianos – Santiago Calatrava – do mesmo modo como a de Gaudí veio do novecento espanhol para ainda se constituir em orgulhoso work in progress rumo ao céu da Catalunha, no caso da catedral (ou melhor, atual basílica) da Sagrada Família, ainda em construção em Barcelona.  
        

MEDITERRÂNEA E CHEIA DE SURPRESAS


Valência é a terceira cidade da Espanha, e a capital de uma Comunidade com mais de 800 mil habitantes no município (conforme aqui chamamos) e quase dois milhões na área metropolitana, que inclui inúmeros sítios históricos. É a “cidade do

Cid”, a terra da legenda inicial da Reconquista – e lá está, na sede da Prefeitura, o estandarte imposto aos derrotados mouros e a longa espada (“da justiça”) do rei Jaime I.

Profundamente espanhola, suas tradicionais Fallas (festas de abertura da primavera) remontam a um passado romano pagão na proximidade dos ritos sagrados ligados aos “mistérios” agrícolas, sem falar da marca dos visigodos que levantaram fortes bastiões de entrada – dos quais restam pelo menos dois importantes portais urbanos ainda em uso (as Torres Serranas).

Na história mais recente – e que ainda duele en el alma dos mais velhos –, foi a brava Valência algo como uma espécie de fiel da balança estratégica na Guerra Civil (1936-39) fratricida que dividiu a Espanha do século passado como poucos conflitos num país foram capazes de separar irmãos de raça em duas metades aparentemente inconciliáveis até a longa ditadura do “Generalíssimo” Francisco Franco emular o rato que, na força das imagens populares, termina por parir uma montanha. Ou seja, o sistema monárquico restaurado pelo vencedor fascista da guerra entre republicanos e inimigos da democracia, em acordo político-social que promoveu o casamento do socialismo de um Felipe Gonsález com um rei surpreendente entre as duas, três ou quatro Espanhas que se podem contar desde os Alpes até as portas da África marroquina contemplando a comunidade malagueña de paredes brancas na Algeciras de Paco de Lucia...

Nessa Valência diferente tanto de Málaga e Sevilha quanto de Barcelona e Madri – pois as regiões são um “estado de espírito” na Espanha de Unamuno e Picasso, Dominguín e Ignacio Zuloaga –, foi que nasceu o arquiteto capaz de atender à demanda de “uma obra de absoluta modernidade”, quando da votação sobre o destino a ser dado ao leito do antigo rio que cortava a cidade e que teve de ser mudado de curso, após uma inundação das maiores já sofridas pelos valencianos. Em face da decisão, a administração regional foi em busca de ocupar essa extremidade do Túria com um projeto à altura das águas históricas, desviadas para longe do centro a partir do começo da década de 1960. E, nesse velho centro, no coração de uma urbe de estandartes e espadas, surgiria um quase alucinação arquitetônica – extremamente funcional, entretanto – a qual foi entregue (como não poderia deixar de ser) a um valenciano típico na maneira de ver o mundo. Vale lembrar que, no momento dessa decisão, começava a prosperar uma Espanha bem menos problemática do que a que hoje atravessa talvez a mais séria das crises econômicas que já se abateram sobre a Europa.
 

SURGE A “CIDADE DE CALATRAVA”


Santiago Calatrava formou-se em Arquitetura na sua cidade natal, em 1974, ao mesmo tempo em que frequentava também os cursos de Urbanismo e Belas Artes, destacando-se como um dos raros alunos habilitados a dar as aulas que cumpria ouvir (alguns dos seus professores recordam o desconforto de “ensinar” a um estudante que aparentava já “saber tudo”).  

Concluídos os cursos, o jovem arquiteto mudou-se da Espanha para a Suíça, a fim de estudar engenharia civil em Zurique, licenciando-se em 1979 e concluindo o doutorado em 1981. “Suas provas oficinais se destacavam pelo partido original de projetos até difíceis de definir, devido à complexidade das formas desenvolvidas com base num já sólido conhecimento tecnológico” – recorda o seu professor (e, mais tarde, colaborador) Felix Candela.     

Provavelmente, essa formação integral (estudos de arquitetura, artes e ofícios, e – depois – engenharia), viria a capacitá-lo para uma gama de diversas empreitadas, desde interiores até grandes infraestruturas como a Ponte de Alamillo, em Sevilha, um dos seus primeiros projetos estruturais, concluído em 1992. E quando surgiu o projeto de uma “Cidade das Artes e da Ciências” a se levantar onde antes corriam as águas do rio turbulento, Calatrava seria um dos jovens arquitetos menos propensos a fazer ancorar no leito do Túria um projeto de entretenimento de concepção blasé, com a finalidade de idiotizar crianças e possivelmente alimentar complexos de Peter Pan em adultos infantilizados. Pelo contrário: propôs que seguissem o antigo caminho tranqüilo do rio, isto é, na direção contrária de um passado de turbulências naturais, políticas etc. Concretizada em formas surpreendentes – como surpreendente é a velha “cidade do Cid” –, a criação desse legítimo inovador no campo arquitetônico foi recebida como uma nova corrente de formas associadas inclusive à idéia da Água como bem não renovável, num planeta que precisa decidir sobre questões vitais para a comum sobrevivência na Terra.

Para mim, foi insuficiente deparar-me, na Coleção Folha/Grandes arquitetos, com as imagens impactantes da calatraviana “Ciudad de las Artes y las Ciencias”, roçando os limites da incredulidade, sim: seriam maquetes, ou aquilo de fato existia, numa Valência que me faltava ver, entre os destinos de quase cinco anos de viagens obsessivamente espanholas?...

Foi assim que me dispus, no final de 2011, a ir conferir pessoalmente a “Ciudad” de formas do século 21 aterrissadas com leveza, força e funcionalidade na mesma Espanha arrojada de Gaudí tanto quanto do obscurantismo da “Opus Dei”, infelizmente. E lá estava a obra de ousadia indiscutível, fazendo “virar” a página das inovações arquitetônicas catalãs – já incorporadas à história das artes – e também atingindo, no cerne daquelas formas, uma espécie de medula nova, artisticamente falando, pelo desdobramento da ligação com a natureza (talvez mais à maneira do pensamento de um Teilhard de Chardin do que mesmo pela ligação com as obras do modernismo barcelonês do incontornável Gaudí) à frente da imaginação ibérico-delirante que Santiago Calatrava vem espalhando pelos continentes europeu e americano.

 Hoje, já são mais de 200 trabalhos – entre estações, aeroportos e projetos de ordenação urbanística na Suiça, em Portugal, Itália, Suécia, Grécia, EEUU, Argentina etc – que levam a assinatura desse homem ainda jovem, com atenção extrema ao pormenor material e dotado de visão estrutural poderosa.

Há, nas suas concepções maiores, a predominância de valores cinéticos-dinâmicos que conseguem “dar a volta” a um certo imobilismo quase inevitável em projetos que implicam grandes massas arquitetônicas. Ele é um “estruturista” vocacional, e gosta de conciliar solidez tecnológica com elementos figurativos que fogem de todo formalismo, talvez pela via das conotações organicistas sempre presentes no seu traço de artista.

 Pode parecer estranho trazer a palavra surrealismo para este terreno, porém essa seria uma das chaves de análise do “estilo calatraviano”, que também vai buscar  inspiração nas lições da natureza, patentes no seus equilíbrios de articulações-rótulas, tendões-cabos e outras harmonias antropomórficas aludidas em construções que não nos desconcertam (como a pirâmide transparente plantada na frente do Louvre).

Essa harmonia é, em parte, agenciada pelo movimento que anima suas formas no mais das vezes assimétricas – embora sempre a partir de configurações dinâmicas que atingem, com naturalidade, aquele ponto perfeitamente escultural, tão desejável em arquitetura. Ou seja, aquilo que muitas vezes se torna o esforço de uma vida inteira, no caso de profissionais menos dotados para o desenho, em Santiago Calatrava parece ser um instinto seguro para compreender o tipo de torre capaz de surpreender – agradavelmente – a Barcelona que viu se erguer a forma quase hipnótica da Torre de Montjuïc como uma nova “marca” da capital da Catalunha, visível de quase todos os seus muitos mirantes.

O arquiteto valenciano era, pois, o homem também naturalmente destinado a criar a obra-prima de arquitetura que hoje dá movimento à antiga paisagem do rio da sua infância – nunca o das “mesmas águas”, segundo o conceito heracliteano (que tem tudo a ver com a dinâmica permanente das formas que Calatrava introduziu nesse ambiente para sempre modificado).

CIDADE PARA O FUTURO

A Cidade das Artes e das Ciências é um grande complexo lúdico-cultural que já se converteu em referência internacional, tanto pela ousada arquitetura de Calatrava – coadjuvado pelo arquiteto Félix Candela – quanto pela proposta do que ali se chama “ócio cultural e inteligente”, no lugar do verbo divertir (ou seja, espaços que pretendem ser meramente diversionais, na apresentação de conteúdos especiais de enseñanza).

Tal sensação se instala a partir da ponte de acesso ao extraordinário conjunto levantado em torno do protagonismo do elemento água na vida deste planeta. Popularmente chamada “ponte de Calatrava”, ela tem um perfil extremamente harmonioso como passarela e via de acesso ao conjunto arquitetônico (e à estação de metrô que leva diretamente para a nova “cidade”). Foi construída com aço de alta resistência, descansando sobre uma viga ligeiramente arqueada, cujo arco inclinado de 14 metros de altura se alonga por 26 metros de largura (e 131 de extensão total), isso tudo inclinado setenta graus sobre o plano horizontal. Seu efeito prepara, perfeitamente, para o Umbral que Calatrava chama de “elemento vertebrador de la Ciudad”, uma espécie de zona verde que dá vistas para todo o complexo – sendo, desde já, um dos parques ajardinados mais belos do mundo.

Dali, o visitante pode se dirigir para o Palácio das Artes Rainha Sofia, um novo teatro de ópera com quatro amplas salas acolhidas sob uma espécie de elmo gigantesco, suspenso sobre a estrutura interna de vidro. Desse edifício arrojado, o passo seguinte é encontrar um dos volumes mais bem concebidos do projeto total: o Hemisférico, espaço para cinema em grande formato, 3D e projeções digitais, que representa o olho humano – ou, mais precisamente, o “olho da sabedoria” – através da forma que se completa pela sua própria imagem num espelho d’água de proporções gigantescas.

Mais adiante, o Museu de Ciências Príncipe Felipe lembra o gigantesco casco de algum animal antediluviano, ocupando uma área de 40.000 m2 na qual Calatrava concebeu módulos interiores “essencialmente interativos”, de modo a estimular os visitantes a interagirem com as exposições, oficinas e outras atividades que se desenvolvem nos museus hoje dinâmicos. 

O maior de todos os subconjuntos teria que ser, necessariamente, o Espaço Oceanográfico, constituído por 10 edifícios espalhados ao longo de 100 mil metros quadrados de superfície. Com o objetivo de educar para a conservação do mundo marinho, o visitante vai encontrar nessa área não menos que 11 pavilhões (de dois níveis) situados em torno de um grande lago central e mais sete aquários. Tudo isso ligado por passarelas, passeios e rampas no nível interior. Dentre as formas do espaço, destacam-se das torres “calatravianas” típicas, que lembram conchas abertas como carapaças, com a finalidade algumas das mais raras dentre as 500 espécies marinhas presentes nesse que é, desde já, o maior centro marinho da Europa. Animais como morsas, delfins, leões marinhos, pinguins, tartarugas, tubarões e belugas estão “em habitat” – e cada espécie relacionada com os ecossistemas (tropical, ártico, antártico) atualmente em estudo no parque que recebe água do mar diretamente da bela praia valenciana de Malvarrosa. 

NO BRASIL


Aqui no Brasil, Santiago Calatrava terá a sua primeira obra erguida no Píer Mauá, na área do Porto Maravilha. Com previsão de inauguração para o segundo semestre deste ano, trata-se do Museu do Amanhã, que faz parte dos projetos museológicos da Fundação Roberto Marinho, e se constitui num complexo de 12,5 mil metros quadrados, orçado em R$ 130 milhões e para o qual o arquiteto espanhol da “Ciudad” do amanhã foi uma escolha natural, segundo os diretores da Fundação carioca.

Entrevistado quando da apresentação dos esboços, no ano passado, Calatrava disse que o visitante do museu “não vai apenas apreciar um espaço museológico. Ele também vai ter a experiência da luz, da vida, da natureza, e poderá contemplar, entre outras paisagens, o Dedo de Deus”.

Esse dedo passa pelas formas naturais aprendidas da Natureza, segundo o espanhol eleito, em 2005, pela revista americana Time, como “uma das cem pessoas mais influentes do planeta”. Tanto que o MA adotará o uso da energia solar e está sendo construído com materiais recicláveis, de acordo com as especificações do arquiteto que diz ter se inspirado inicialmente na bromélia, para os estudos prévios de concepção da forma desse museu de denominação um tanto vaga, convenhamos. 

“Se o lugar não é bonito (a praça na zona do porto da “cidade maravilhosa”) – acrescenta Calatrava, com mais franqueza – é preciso fazer coisas belas; por que não 'bromeliáceas' ou formas angulosas que vão se arredondando, em metamorfoses? São coisas que eu associo a este país, embora as formas sempre se abstraiam, porque a arquitetura termina por propor algo quase sempre autônomo, no resultado final”.

Foi desse mesmo modo, afinal, que ele concebeu uma cidade nova dentro do espaço aberto num velho rio valenciano – e, assim, um “Museu do Amanhã” brasileiro não deve ter constituído nenhum especial desafio para o arquiteto espanhol com a cabeça no século 21.

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